Azul sem nome


longo destino sob a noite nas pedras de ninguém
quando o rio destoa das vertentes do céu
profundo sob o peso rasgado da chuva

mesmo a certeza desaba além dos homens

longa e lenta a história inscrita nessas mãos
mais vivas do que a luz no impulso do fim
mais ocas do que as trevas à procura do azul

Lilia

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

anunciação

enquanto choram as mãos doídas
postas em prece e pranto
nova vida é anunciada em arco e íris
e os olhos sorrindo subsistem ao tempo
de entender tua presença
- mãe -
para sempre em nós

Lilia
... pelo dia 19, seis anos já passaram..

duas luas

são duas luas sem violoncelo
sem o resplendor dos anjos
ou dos desesperados
apenas mais uma em noite de vidro
silente de músicos
duas luas místicas
- pálpebras sem mistério ou verdade

mas do sorvo dessas luas
nasceu o poema
sem documento ou fonte

apenas a luz sonâmbula da vida

silêncio

o silêncio da palavra é mais linguagem
força invisível de falso vazio
voz de pensamento
ideia
rebeldia
sangue a preceder o corpo
o silêncio é o reverso do corpo
a afirmação de ser
o olhar ante a imagem
destino e fonte do real
rede entre almas
sigilo
saudade
...
a palavra em silêncio é mais linguagem

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Estavamos em pleno inverno tropical, o céu branco-molhado, a ar envolvendo as coisas com uma porosidade que se transfere do ambiente para os corpos e para o pensamento. Pancadas de chuva intercalam-se com essa liquidez aérea e aqui e ali um pouco de sol torna translúcido o céu esbranquiçado. A dor se instalou definitivamente em uma dessas manhãs de fevereiro, do Norte. A pontada de dor tendo-se implantado na região lombar das minhas coisas, irradiou-se atingindo as duas pernas com um peso e um cansaço quase inacreditáveis. Deitei imediatamente, tentando encontrar uma posição que aliviasse aquela pontada, dobrando as pernas numa tentativa de protegê-las do peso e do incômodo que causava. Enfim o corpo respondia à longa sucessão de angústias e pavores que tem massacrado meu coração. Eu tinha a mais pura certeza de que o meu corpo ia pifar. Remédios cuidadozemente recomendados para que não provocasse reacões alérgicas, que costumavam me acomter quando mais nova os médicos receitavam remédios novos para mim e no final o susto da urticária que me transformava em monstro e da rouquidão que precedia o edema de glote acabavam sendo mais preocupantes do que a doença inicial e os remédios para curá-la. E lá eram dias e dias para desinchar os olhos e os lábios e para conseguir amenizar a coceira desesperradora da urticária alérgica. Passei a não tomar remédios novos e ia deixando o corpo reagir lentamente, sem a intervenção da ciência médica. Mas desta vez, a dor ia fundo demais, incessante, não havia posição aceitável para as pernas. O jeito foi telefonar para todos os médicos que conhecíamos para tentar uma solução sem que eu caísse nas malhas da alergia.
Era domingo de carnaval, o que se chamava, outrora, de domingo gordo...

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

tempo guardado

J'éprouvais un sentiment de fatigue et d'effroi à sentir que tout ce temps si long non seulement avait, sans une interruption, été vécu, pensé, sécrété par moi, qu'il était ma vie, qu'il était moi-même.


Marcel Proust


Cette fatigue, eu a sinto ultimamente, luto com o tempo lutando comigo mesma. E me sinto terrivelmente inútil. Inútil como os objetos que guardei todos esses anos, dentro de caixas, enfurnados nos armários, entulhando prateleiras, ocupando espaços que fazem falta para guardar outras coisas inúteis. Uma fadiga igual eu sinto em relação às pessoas que guardei em mim, as pessoas que dentro de mim transfiguram-se em sentimentos todos de ternura. As coisas amarelam, perdem seu brilho, e eu as olho perguntando o que elas significavam para mim no momento em que as quis preservar do tempo e que, ao contrário, expus a ele, escondendo-as, deixando-as esperar por outros olhares. Eu poderia dizer que as coisas guardadas tão afetuosamente por mim absorveram os encantos do passado, sugaram-nos. São roupinhas que minha filha usou em bebê, e depois meus netos ainda puderam vesti-las uma ou duas vezes para minha (e só minha) satisfação. São brinquedos que queria preservar para alegria de outras gerações. São papéis que me trouxeram prazer ao colecionar, cartas, fotos, recortes, cromos, desenhos, rabiscos até. Mas ao encontrá-los, hoje, me trouxeram um impressão de inutilidade tão intensa que me impregnaram dessa qualidade: inútil sou eu, guardada no tempo por mim mesma, junto com todos esses detalhes de meus gestos e de meus momentos, que ficaram perdidos nos vãos dos armários sem que eu sentisse falta deles, que em nada mudariam minha vida se não existissem mais, que eu posso jogar fora hoje, sem me comover... Um dia eu vou ser jogada fora pelo própria tempo e hoje eu me assombrei com a minha impressionante inutilidade...